JUSTIFICAÇÃO

Por: Vitor Couto





 
JUSTIFICAÇÃO
Justificação é o nosso relacionamento externo com a justiça de Deus. Enquanto a regeneração é o que Deus faz “dentro de nós”, ou “em nós”, pelo seu
Espírito, a justificação é o que Deus faz “fora de nós”, ou “por nós” através de Jesus Cristo. Contudo, como um homem pode permanecer justo diante de Deus? Mais grave ainda é “como pode um pecador ser considerado justo diante de Deus?” Essas questões serão tratadas abaixo.
Ninguém, desde a eternidade, conseguiu cumprir a lei. Quando uma pessoa obedecia a diversos mandamentos, mas tropeçava em um, era condenado e culpado de desobedecer a todos. “Pois qualquer que guardar toda a lei, mas tropeçar em um só ponto, tem-se tornado culpado de todos” (Tg 2.10). É por isso que Paulo disse que ninguém é justificado pela lei. “É evidente que pela lei ninguém é justificado diante de Deus, porque: O justo viverá da fé […]” (Gl 3.10). O homem não justifica a si mesmo, antes “é Deus quem os justifica” (Rm 8.33).
É bom ressaltar que a justificação não torna nem faz alguém justo ou reto, mas tão somente, o considera justo. Esse foi um dos grandes erros da Igreja Católica. O Concílio de Trento (1546-1563) afirmou que a justificação se inicia no momento do batismo e transforma as pessoas. Quando o juiz dá um veredicto, primeiro analisa os fatos e, somente após, reconhece (não mudar) alguém justo ou culpado perante a lei. Em outras palavras, “a justificação é simplesmente uma declaração ou pronunciamento a respeito do relacionamento da pessoa com a lei com a qual o juiz o deve julgar” (MURRAY, 2010, p. 109).
Kaiser também concorda com isso dizendo: “Na justificação, porém, somos declarados justos, e não ‘feitos’ justos” (KAISER, 2011, p. 299). Sobre isso, John Murray (2010, p. 109, 110), descreve três argumentos para provar que a justificação apenas reconhece ou considera alguém justo. Descreverei aqui apenas às duas primeiras afirmações.
(1) Nos dois testamentos a palavra “justificar” descreve apenas declarar alguma pessoa justa. “Se houver contenda entre alguns, e vierem a juízo para serem julgados, justificar-se-á ao inocente, e ao culpado condenar-se-á” (Dt 25.1). Aqui está simplesmente mandando o juiz condenar ou inocentar alguém que pela lei já é ou não culpada. O texto de Lucas é ainda mais categórico ao assegurar: “E todo o povo que o ouviu, e até os publicanos, reconheceram a justiça de Deus, recebendo o batismo de João” (Lc 7.29). Observem que eles reconheceram, não tornaram, pois, ninguém pode tornar Deus justo, ele já é Justo por excelência.
(2) Condenar e justificar alguém são coisas distintas. Assim como condenar um culpado pelo crime não torna ele um criminoso, pois, já o é, assim também, justificar alguém não torna ninguém justo.
Stott faz uma separação entre ser perdoado e ser justificado e demonstra que a justificação apenas nos coloca numa posição privilegiada externamente. “Os dois conceitos [perdão e justificação] certamente são complementares, contudo, não idênticos. O perdão redime nossas dívidas e cancela nossa responsabilidade pelo castigo; a justificação nos concede uma posição justa perante Deus” (STOTT, 1991, p. 162). Walter Kaiser, complementa: “Justificação não é o mesmo que perdão, porque no perdão perdoa-se apenas a dívida/multa, o que faz dele um conceito negativo. Na Justificação, porém, há plena aceitação, e isto é positivo” (KAISER, 2011, p. 299).
Outra questão a ser analisada é se o padrão de julgamento de Deus é um pouco diferente do que o homem utiliza? Deus ordenou ao homem que condenasse o ímpio e justificasse o justo, observe: “O que justifica o ímpio, e o que condena o justo, são abomináveis ao Senhor, tanto um como o outro” (Pv 17.15). Nada mais justo, mais será que Deus também age dessa forma? E se ele agir diferente, isso é injustiça? Para o homem, se recusar a fazer o bem é pecado (Tg 4.17), mas para Deus, não. Paulo disse que Deus tem misericórdia de quem ele quer (Rm 9.18), e ter misericórdia é fazer algo bom, isso torna Deus injusto? De modo nenhum! Nós somos obrigados a sermos misericordiosos por que Deus foi e é misericordioso para conosco. Basta lermos a parábola do “credor incompassivo” (Mt 18.23-35). A diferença é que nós somos o barro e Ele o oleiro. A discrepância é muito grande. Mais então, Deus condena o culpado e justifica o justo? Por um lado, sim, e por outro, não. Vejamos a seguir:
Sim, porque Deus não deixou os pecados anteriormente impunes: “Aquele que nem mesmo a seu próprio Filho poupou, antes o entregou por todos nós, como não nos dará também com ele todas as coisas?” (Rm 8.32). Na parte ‘A Necessidade da Expiação’ é tratada como Deus sendo tão justo não perdoou as pessoas sem antes cumprir a lei.
Não, pois, a Bíblia é bem categórica ao falar que Deus justifica o pecador, “mas crê naquele que justifica o ímpio, a Sua fé lhe é contada como justiça […]” (Rm 4.5; grifo nosso). É importante esclarecer esse texto para não gerar confusão, acreditando assim na salvação universal de todos os homens. Os que são justificados não são as pessoas pecadoras que não serão salvas, antes as pessoas arrependidas de seus pecados. A justificação só se concretiza no mesmo momento da redenção. Todavia, como assim, continuamos pecando e mesmo assim somos justificados por Deus? Aqui e agora os eleitos são libertos do poder do pecado pela regeneração e a santificação, e da culpa do pecado pela justificação, mas seremos libertos dos pecados somente na glorificação. Falando sobre Romanos 4.5, Stott expõe quatro fundamentos da justificação.
1. A fonte da justificação é a sua graça (Rm 3.24).
2. Somos justificados pelo sangue de Jesus Cristo (Rm 5.9).
3. O meio da justificação é a fé (Rm 5.1).
4. A justificação só se dá se estivermos em Cristo: — “Dizer que somos justificados ‘mediante Cristo’ aponta para a sua morte histórica; dizer que somos justificados ‘em Cristo’ aponta para o relacionamento pessoal com ele” (STOTT, 1991, p. 171).
Só somos justificados porque a justiça de Cristo é imputada a nós: “Justificação é, portanto, um ato constitutivo pelo qual a justiça de Cristo é imputada em nosso favor e, de acordo com isso, somos aceitos na qualidade de justos diante de Deus” (MURRAY, 2010, p. 112).
O texto de Isaías 61.10 é uma confirmação de que a justiça de Cristo é imputada a nós, encontraste com o que Pope diz: “O ímpio que em penitência acredita que possui a virtude ou eficácia da obediência de Cristo computada a ele sem ter esta própria obediência imputada: ele é feito justo de Deus n’Ele, que difere de ter a justiça de Cristo colocada em sua conta” (OLSON, 2013, apud Pope, p. 279).
A esse respeito, Isaías fala que Deus nos cobriu com justiça. Decisivamente, essa justiça só pode ser a Sua, pois, somos pecadores. Vejamos: “Regozijar-me-ei muito no Senhor, a minha alma se alegrará no meu Deus, porque me vestiu de vestes de salvação, cobriu-me com o manto de justiça, como noivo que se adorna com uma grinalda, e como noiva que se enfeita com as suas joias” (Isaías 61.10; grifo nosso).
Se a justiça de Cristo não for imputada a nós, certamente não seremos salvos, ou, pelo menos, não iremos ao céu, mas isso só se torna possível através da imputação dos nossos pecados em Cristo e a justiça de Cristo imputada a nós.
Se tudo que aconteceu foi a simples transferência de nossos pecados para Jesus, não fomos justificados. […] Seria suficientemente bom para manter-me fora do inferno, mas eu ainda permaneceria injusto. […] Não somente o pecado do homem é imputado a Cristo, mas também a justiça de Cristo é transferida a nós, lançada em nossa conta” (SPROUL, 2013, p. 86).
Roger E. Olson dando a sua opinião, assim escreve: “Concordo com Armínio e a teologia reformada que a justiça deve ser a obediência de Cristo, que é considerada como a do crente […]. Certamente se ele cumpriu toda a justiça e nós estamos ‘em Cristo’ pela fé, seria a justiça dele que nos seria imputada” (OLSON, 2013, p. 283).
Paulo escrevendo sobre Cristo, de tal modo articulou: “Àquele que não conheceu pecado, Deus o fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (2 Co 5.21).
Destarte, tão logo podemos fazer a seguinte pergunta: “Quando é que somos justificados por Deus?” A nossa justificação aconteceu no momento da morte de Cristo ou no momento que temos fé em Cristo? Pelos decretos divinos, nós somos justificados na eternidade, mas ela só se concretiza de fato na história: “[…] verdade é que desde a fundação do mundo somos justificados, nos decretos de Deus. Mas isso não se consumou até o tempo e a ocasião da obra de Cristo; e não se realiza enquanto não somos vivificados pelo Espírito Santo, para que venha à fé” (SPROUL, 2013, p. 145).
A imputação da Justiça de Cristo só acontece quando adquirimos fé e “no mesmo momento de nossa justificação somos feitos ‘santos’, pois, fomos ‘santificados em Cristo’” (STOTT, 1991, 166). Sproul disse muito bem: — “a fé é o único meio pelo qual a justiça e méritos de Cristo podem ser lançados em nossa conta e atribuídos a nós” (SPROUL, 2013, p. 88). Quando a Bíblia fala que Deus justifica o ímpio, ela está dizendo que Deus puniu a Cristo, deste modo, nós, mesmo pecando, somos justificados por Deus. Assim, como falamos da redenção, os benefícios da Morte de Cristo nos tornam santos pelo Seu Espírito.
Qual é a diferença de justificação para santificação? A justificação acontece em um instante, à santificação é progressiva, — o fim da santificação é a glorificação, enquanto o fim da justificação é a própria justificação.
“A justificação (Deus torna justo através da morte do seu Filho) é instantânea e completa, não admitindo graus, ao passo que a santificação (Deus nos tornando justos através da habitação do seu Espírito), embora iniciada no momento em que somos justificados, é gradual e incompleta por toda vida” (STOTT, 1991, p. 166).
Somos salvos para sermos santos e produzirmos boas obras “criados em Cristo Jesus para boas obras […]” (Ef 2.10). Mas somos justificados pela fé e não pelas obras. “Justificados, pois, pela fé” (Rm 5.1). Há os que se acham bons o suficiente para seres salvos por meio das obras, todavia, devemos lembrar de que Israel foi rejeitado por Deus exatamente por esse motivo, vejamos: “Mas Israel, buscando a lei da justiça, não atingiu esta lei. Por quê? Por que não a buscava pela fé, mas como que pelas obras; e tropeçaram na pedra de tropeço […]” (Rm 9.30-32). Paulo vai mais longe assegurando: “Assim, hoje também há um remanescente escolhido pela graça. E, se é pela graça, já não é mais pelas obras; se fosse, a graça já não seria graça” (Rm 11.5,6, NVI, grifo nosso).
Greshan Machen, assim descreve o contraste teológico que existia entre Paulo e os judaizantes:
Paulo disse que uma pessoa: (1) primeiro crê em Cristo, (2) então é justificada diante de Deus, (3) e imediatamente prossegue para obedecer à lei de Deus. Os judaizantes diziam que uma pessoa: (1) crê em Deus, (2) obedece à lei de Deus da melhor maneira possível, e então (3) é justificada (MACHEN, 2012, p. 26).
A graça unicamente é quem nos salva. “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus; não vem das obras, para que ninguém se glorie” (Ef 2.8; grifo nosso). Lutero, erudito nesse assunto, nos traz um belo esclarecimento de que as obras só existem pela fé. Segundo este: “A árvore deve vir primeiro, então o fruto. Pois, não é a maçã que faz a árvore, mas a árvore que faz a maçã. De modo que primeiro se faz a pessoa, que, depois, produz as obras” (STOTT, 1991, apud Lutero, p. 168).
Murray é outro que descreve muito bem sobre esse assunto, notemos: “[…] as Escrituras, […] elas afirmam sempre a justificação conforme a fé, pela fé ou por meio da fé; mas nunca afirmam a justificação por conta da fé ou por causa da fé” (MURRAY, 2010, p. 113). Essa observação é muito importante, pois, alguém pode sugerir que se somos salvos pela fé, então é por conta da fé que somos salvos. Contudo, Murray (2010, p. 113-115) contestando que “a fé em si mesma não é justiça”, traz determinadas argumentações que será relevante tratarmos, observamos.
1. Uma justiça como essa (se a fé em si mesma salvasse) poderia (se formos justos), eliminar todos os pecados futuros, mas certamente o débito do passado permaneceria. Apesar da regeneração em nós, nunca poderíamos pagar os pecados antes cometidos. Então uma justiça forjada em nós é impossível.
2. A justificação não se dá em nós mesmos, isso seria ser justificado pelas obras, notamos: “Porquanto pelas obras da lei nenhum homem será justificado diante dele” (Rm. 3.20; 4.2; Gl. 2.16).
3. Somos justificados pela Graça de Deus, e graça é favor imerecido, ou seja, algo externo nos justifica sem merecermos. “Porque pela graça sois salvos” (Ef 2.8; Rm 3.24).
Algo digno de nota é que “não temos fé em nós mesmo, temos fé em outrem”, logo, temos fé naquele que nos justifica e não em nós mesmo. Machen, em seu livro, Cristianismo e liberalismo, contesta a visão liberal que tem Cristo apenas como um exemplo e um guia a ser seguido, diz ele:
Existe uma diferença profunda, portanto, entre a atitude do Liberalismo moderno e do Cristianismo para com o Senhor Jesus. O Liberalismo o considera um exemplo e um guia; o Cristianismo o considera um salvador; o Liberalismo o faz um exemplo de fé; o Cristianismo, o objeto da fé (MACHEN, 2012, p. 83).
Stott fala sobre isso do seguinte modo: “A fé, em si mesma, não tem absolutamente nenhum valor; seu valor está somente em seu objeto. A fé é o olho que olha para Cristo, a mão que a segura, a boca que bebe a água da vida” (STOTT, 1991, p. 167). A direção que as escrituras apontam é que somos justificados em Cristo, por meio do sacrifício de Cristo, logo é pela justiça de Cristo e não de nós mesmo que somos justificados. “A fé é meramente a causa instrumental e jamais a causa meritória da justificação, que é a obediência expiatória de Cristo” (OLSON, 2013, p. 279).
Alguém pode dizer: “Então é só ter fé em Cristo e nada mais”. No entanto, a fé que estamos falando não é uma fé morta, mas sim, uma fé viva, uma fé salvífica. Tiago nos alertou sobre isso da seguinte maneira: “Porque, assim como o corpo sem o espírito está morto, assim também a fé sem obras é morta” (Tg 2.26).
Não obstante, John Wesley contestando as pessoas que pensam que é só ter fé e nada mais, escreve que a fé move não somente o lado intelectual, mas também o emocional “não é [fé] apenas uma coisa especulativa e racional, uma admissão fria e sem vida, uma série de ideias na mente; mas também no fato de ser ‘uma disposição do coração’” (Collins, 2010, apud Wesley, p. 227). Toda fé verdadeira produz obras boas.
Robert Letham explica muito bem o aparente contraste entre Paulo e Tiago:
[…] a fé nunca é só. Além do mais, Paulo e Tiago citam exemplos diferentes. Paulo refere-se a Abraão como sendo justificado pela fé quando ele creu em Deus, e isso lhe foi imputado para sua justiça (Gn 15.6). Tiago aponta para Abraão oferecendo Isaque sobre o altar (Gn 22) e diz que sua fé foi demonstrada pelas suas obras (Tg 2.21,22); (LETHAM, 2007, p. 183).
 Não apenas podemos, mas devemos dizer e defender veementemente que Cristo morreu para nos justificar diante de Deus. É bem verdade que em Romanos, capítulo 4, versículo 25, diz que Cristo ressuscitou para nos justificar — “O qual foi entregue por causa das nossas transgressões, e ressuscitado para a nossa justificação”, mas Ele só poderia ressuscitar se estivesse morto. Assim como morte e ressurreição é algo intrínseco, assim também é a expiação e a justificação.
Como morte e ressurreição permanecem juntas como aspectos gêmeos da realização central de Cristo, o mesmo acontece com a expiação e a justificação. A morte na cruz não foi o final para Jesus. […] Da mesma forma como a morte e ressurreição são inseparáveis e mutuamente necessárias, assim também a justificação não pode acorrer sem a expiação pelos pecados (LETHAM, 2007, p. 176).
Hoje, podemos dizer: “Portanto, agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1).



Vitor Couto
O pastor Vitor Rodrigo Couto Silva congrega na ADSA Brasil. É casado com Tamiris Couto e pai do Johnny Couto. Formado em Bacharel em Teologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Licenciado em História pelo Centro Universitário Claretiano e Licenciatura Plena em Filosofia pela Universidade São Judas Tadeu.
Atualmente cursando pós-graduação em Bíblia pela Faculdade Luterana (EST) e mestrando em Teologia em Divindade pela Faculdade Internacional em Teologia Reformada (FITRef).
Escritor do livro "A expiação de Cristo e a Justificação dos homens ".
Debatedor em rádios e televisão.
Instagram e YouTube: vitorcoutooficial


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